Os Três Mundos de R. F. Lucchetti de Nobu Chinen (Criativo, GRRR!, 84 páginas)
O Samurai do Traço, Julio Shimamoto de Dario Chaves (Criativo, GRRR!, 164 páginas)
Fazemos escolhas o tempo inteiro, certas ou erradas, bem ou mal intencionadas. Entendemos ou não entendemos. E como vivemos em sociedade, também somos martelos e espelhos, uns dos outros. Cresci ouvindo que cinema e quadrinhos brasileiros eram ruins. O primeiro porque era mal filmado e gravado, e o segundo mal feito.
Toda criança se impressiona cedo. E determinadas impressões marcam e sugam a alma com fogo. Os livros e os quadrinhos foram determinantes na história dos biografados Rubens Francisco Lucchetti (1930) e Julio Shimamoto (1939). Mas quando a criança imagina que será artista, só é capaz de prever um sonho dourado (a mesma percepção coletiva dos adultos sobre essa questão). Até porque se a criança perceber o que virá, provavelmente escolherá um caminho mais fácil.
Há uma tendência natural em exaltar o artista e minimizar a massa, o público, o não genial. Bem… Lutar pela sobrevivência, e de forma honesta, também é para heróis e não pra gênios – apesar que sempre há alguma genialidade na sobrevivência.
Curiosamente, muitos dos mestres da época mítica dos quadrinhos brasileiros, a partir da década de 1950, são estrangeiros ou descendentes de… A lista é imensa, mas ambos os livros analisados nesta resenha tratam de dois “deles”, uma dupla absolutamente gigantesca: o roteirista Lucchetti e o ilustrador Shimamoto, que para sobreviverem trabalharam pelo pão nosso de cada dia sem nunca deixarem os sonhos morrerem. E hoje, em 2021, estamos falando sobre um nonagenário e o outro octagenário, absurdamente jovens.
Aqui, nesta resenha (na verdade, mais uma observação) destacarei a humanidade dos biografados. Em primeiro lugar, nenhum deles nasceu em berço de ouro. As mudanças de cidade constantes. A vida muito mais difícil e a informação bem inacessível. Nada disso, os impediu de superarem as dificuldades. Na fase adulta, e profissional, se reinventaram constantemente. Através das décadas. Conviveram com agências e editoras que nasceram e morreram – editores idem -, falências, mal entendidos, sucessos estrondosos e fracassos retumbantes.
Assim como a memória humana se perde, o mesmo ocorre com os originais – e a importância deles, também. Tudo é papel, tudo é pó, mas hoje, podemos substituir por tudo é backup e o dano é real… É uma constante lição de desapego e empenho. E em que esquina da encruzilhada existencial, Deus e o Diabo na Terra do Sol, podem se encontrar? Na batalha pela vida. E isso nada tem de existencial. Tem de humano. De sermos humanos demasiadamente humanos.
Por exemplo, não existem mais as artes originais do ilustrador Nico Rosso, o favorito de Lucchetti, perdidos em uma enxurrada que desmoronou o seu estúdio. E Kioichiro, o pai de Shimamoto desembarcou para uma nova vida, no porto de Santos em dezembro de 1928, com espadas recebidas como herança – por ele ser o primogênito –, relíquias de quase 5 séculos (!!!) que foram confiscadas pela alfândega! (obs: réplicas dessas 2 espadas e uma tantô, uma adaga curta, hoje decoram a casa de Shimamoto)
Também como autores e criadores do “terceiro” mundo, inventamos, mas não levamos os troféus. O discurso do vitorioso normalmente é de quem tem as armas. E o dinheiro. Parece ser a sina do desbravador.
De 1968 a 2004, Lucchetti contabilizou 1.547 títulos – escritos por encomenda – e com pseudônimos inclusive. Ou seja, um recorde também de não recebimento de direitos autorais. E Shimamoto teve que trabalhar na Publicidade, para sobreviver. Um ambiente em que cão come cão. Demasiadamente canino…
E Shima, ao se envolver com política e sindicatos para ajudar a classe nos anos 1960 (ADESP – Associação dos Desenhistas do Estado de São Paulo – e a luta pela cota de nacionalização dos quadrinhos através da CETPA – Cooperativa e Editora de Trabalho de Porto Alegre) acabou sendo perseguido e inclusive detido nas prisões da ditadura militar pela OBAN (Operação Bandeirantes).
Muito me emociona ler e reler essas biografias. Não me entristecem, me encantam. Aconselho o mesmo. E para quem quiser realmente conhecer os trabalhos desses verdadeiros mitos, basta adquirir seus lançamentos, relançamentos e conhecer mais sobre o nosso país e nossos heróis humanamente heróis.