No documentário Arquitetura da Destruição, Hitler, já todo poderoso na década de 1930, inaugura uma exposição com os melhores exemplares da arte clássica, que engrandece o espírito humano, em oposição à degenerada e promíscua arte “judaica”… Essa foi a primeira cena que passou-me pela cabeça quando li a respeito do abaixo assinado de cristãos indignados (2 milhões na última contagem) com o Especial de Natal do Porta dos Fundos sobre o Jesus gay. O Brasil, dos tempos atuais, esse Brasil reacionário que quer se impor a todo custo, apoiaria o assassinato dos chargistas do Charlie Hebdo em 2015? Provavelmente, sim…
Assistir ou não assistir aos Especiais, entender ou não entender, aceitar ou não aceitar não faz a mínima diferença. Isso é um fato. É assim que a maior parte das pessoas procede. Falam sem nem sequer saber do que se trata. Exatamente como ocorreu hoje, quando li um print entre um correspondente e uma menina que se colocava contrária a Paulo Freire sem nunca tê-lo lido… Esse meu conhecido insistiu na pergunta à indignada menina que se defendeu dizendo que conhecidos dela haviam lido Freire, ou coisa semelhante, e que ela aceitava as críticas deles…
“Eu não vi, mas ouvi falar que é ruim!”
Antes de analisar o Especial, na verdade, os Especiais, gostaria de dizer que fui criado como católico e que há décadas desenvolvi um método próprio de ser católico, para não deixar de sê-lo, e que não se conflita em nada com o fato de enquanto artista, eu também poder ser herético, quando necessário, e iconoclasta.
Por isso, é importante relembrar dos passos caminhados – e dos filmes assistidos – para falar sobre o hoje.
Nos anos 1970, um dos primeiros filmes que assisti em cinemas foi Godspell, uma ópera-rock hippie sobre o Novo Testamento. Em seguida, vi na TV os escândalos das seitas estadunidenses e os Meninos de Deus… Já crescido, também em cinemas, assisti à Última Tentação de Cristo (dirigido por Martin Scorsese) e à Vida de Brian (do Monty Phyton) na virada entre a década de 1970 e o iniciozinho dos 1980, em plena ditadura e ainda acreditando que John Lennon gravaria mais discos pouco inspirados como o Double Fantasy… Sem contar que passei vários natais a assistir ao Cristo de Zeffirelli e ao Jesus Cristo Superstar. Em 1985, não pude assistir ao Je vous salue, Marie na época do José Sarney, no raiar de nossa pretensa e insípida democracia, mas o vi quando pude e não me encantou como eu, ingenuamente, esperava.
Acredito ter sido necessário listar os filmes “crísticos” para dizer que, após gritos e fogos ao Flamengo, aproveitei o 17 de dezembro, véspera de natal, para assistir aos 2 Especiais do Porta dos Fundos, um deles lançado no ano passado, e que aparentemente não recebeu nenhuma ovação e nem teve uma campanha contra a sua exibição.
Comecei pela Primeira Tentação de Cristo (o do Cristo Gay) para emendar no Se Beber, Não Ceie (de 2018).
São produções heréticas? Sim. Podem ofender aos religiosos? É claro! Mas são muito inteligentes, e muito bem escritos. Os atores, para não listá-los nominalmente, são ótimos. E o que fazer com uma visão de vida diferente? Eu não assisto programa de pastor, mas eles infestam os horários pagos da TV. O que faço? Não assisto. Assim como não entro em página alheia para falar mal do moro, mas entram na minha para falar mal do Lula… E assim vivemos, nós simplórios humanos, entre bloqueios e bolhas.
A Bíblia – ou as Bíblias – permite várias interpretações. Há a da Record e há a que quisermos, tanto que programas como Alienígenas do Passado afirmam que Jesus é ET e não há abaixo-assinados contra… Temo até explicar o porquê…
Não assisto aos programas do Porta, mas admiro muitos dos atores e gosto do Gregório Duvivier. O texto de ambos os Especiais é muito perspicaz e muito carioca, o que pode agredir e causar bastante mal estar em quem não está afeito à essas questões comportamentais. Eu garanto que acima das diferenças de classe, o que se fala no Porta – e como se fala – é exatamente o que se fala nas ruas do Rio, abertamente. É grosseiro, xinga-se demais – com muito amor -, o pessoal é meio FDP mesmo (“a.k.a.” debochado), mas essa é a escola dos profundamente mordazes. É uma maneira de sobreviver e de se comunicar. É o humano demasiadamente humano.
Já li que o Porta é um “Monty Phyton terceiro-mundista”. Não é (e como resposta debochada a essa questão, há uma citação à Vida de Brian no Se Beber, Não Ceie). Também já li que é “piada de menino branco e rico da zona sul carioca”… Não é. Isso é preconceito enviesado e inveja. Para escrever como ele (Fábio Porchat inclusive) é preciso ser inteligente e capaz. Muitos artistas que não nasceram em favelas são tão dignos e transformadores quanto os artistas das camadas populares. Sem mencionar as diferenças entre meritocracia e cotas. Ou não…
Quanto à questão religiosa, ambos os Especiais são heréticos para quem os quiser ver assim, como também têm um papel de conscientização revolucionária.
Incomodam? Sim. Ainda mais para o Brasil dos tempos atuais, da goiaba, dos cartazes exilados na Ancine, do desmatamento, do vazamento, de Paraisópolis, dos integralistas, da pirralha e do energúmeno. Mas também compete à arte, pop ou não, fazer pensar, horrorizar, e enojar, assim como fazia o argentino León Ferrari (1920-2013) que indignou o nosso amado Papa também argentino.
Agora, sigo para uma análise muito própria dos Especiais: eles não são contrários à determinadas interpretações das Escrituras que inclusive já foram expressas no filme A Última Tentação de Cristo. As reforçam, inclusive.
Nos programas natalinos do Porta, estão as mesmas perguntas que nos fazemos constantemente: se Jesus é Deus ou não; se Maria Madalena era prostituta ou uma mulher livre; se a mãe de Jesus gerou o filho da forma convencional; se o diabo é um “mal necessário”, a reflexão sobre o Deus punitivo do Antigo Testamento e o Cristo vingativo dos Apócrifos e finalmente, se Judas era um traidor ou o único discípulo consciente…
Nesse ponto, gostaria de frisar, os dois Especiais fortalecem a própria fé, e não a destroem.
Toda fé precisa ser questionada para sair fortalecida do embate.
Só não dá para assistir em família na ceia de Natal… Para isso, toda a sua família precisaria ser muito “cabeça-feita” e desapegada de convenções – e verdades-absolutas. E assim mesmo, cada ouvinte-espectador teria interpretações diferentes, o que daria um belo debate – ou embate.
Assisti duas vezes a cada um dos Especiais. Isso já diz muito. E entre eles, há vários momentos simbólicos. Pelo menos, um em cada um dos filmes: o encontro de Cristo com Buda e Shiva e os discípulos apontando Judas como o único traidor, os mesmos homens e mulheres que nunca compreenderam os ensinamentos de Cristo.
Exatamente como a maioria dos seguidores de Cristo que nunca entenderam nada a respeito daquele que dizem seguir.