Entrevista com Marcolino Jeremias sobre anarquismo e o livro “carlo e anita aldegheri”

Geral

Esta entrevista foi publicada, editada, na revista Tupinambah 2.

“O anarquismo brasileiro não vale nada!” Para cunhar tal comentário somente alguém que tivesse muita moral. E essa pessoa se chamava Carlo Aldegheri, anarquista italiano que se refugiou no Brasil, após a segunda guerra, com a companheira Anita. O militante Marcolino Jeremias, atuante no movimento anarcopunk , empenhou-se para que o livro “Carlo & Anita Aldegheri: Vidas Dedicadas ao Anarquismo” recontasse – ou contasse – essa incrível história. Que poucos conhecem.

Anita & Carlo

No prefácio do livro, o coletivo editorial de “Vidas Dedicadas ao Anarquismo” levanta duas possibilidades para o apagamento histórico do casal: poderia ter sido proposital (pelas opiniões polêmicas do Carlo) ou pelo completo desconhecimento dos jovens em relação aos mais velhos e um certo descuido do anarquismo em preservar a sua própria história.

A entrevista com Marcolino elucida várias questões.

1 – O que é o anarquismo?

O anarquismo é uma ideologia socialista e revolucionária, cujas bases se definem a partir de uma crítica a todas formas de dominação, defendendo uma transformação social que permita a substituição de um sistema de coerção por um sistema de autogestão social protagonizado diretamente pelas próprias pessoas. Enquanto as outras vertentes do socialismo priorizam a luta contra a dominação econômica, o anarquismo enfatiza que a luta pela transformação radical da sociedade deve acontecer, ao mesmo tempo e com igual vigor, em todas as esferas de dominação: econômica, política, cultural. Isso fez com que historicamente o anarquismo desenvolvesse uma vasta tradição na luta contra a dominação de classe, de gênero, de raça e imperialista. Esse é o ponto principal que distingue o anarquismo do socialismo, e que, ao meu ver, torna o anarquismo mais radical do que qualquer outra vertente do socialismo.

Em outras palavras podemos dizer que o anarquismo acaba com a organização social onde um indivíduo ou grupo manda em todos os outros, dando lugar a uma nova organização social onde cada um tem direito à opinar sobre os rumos da sociedade em que vivemos e, acima de tudo, total liberdade para escolher como vai viver nessa nova sociedade. No anarquismo não há hierarquia, exploração, coação física, monopólio nas decisões sociais e também não há relações de mando e obediência. Nos regimes de governo representativos (como o que nós vivemos), as coisas funcionam exatamente ao contrário, o indivíduo geralmente tem que abdicar do seu modo de vida, por uma série de imposições (necessidades econômicas, falta de estrutura e recursos, etc…) para adaptar-se aos padrões impostos pelos aparelhos de poder. Já no anarquismo existe um equilíbrio entre o meio social e o indivíduo.

Todo mundo deve ter o direito de viver sua vida da maneira que quiser e deve ter assegurado os meios necessários para fazer isso. Só quem sabe o que é melhor para uma pessoa é a própria pessoa. As pessoas se reúnem em grupos e decidem entre si o que é melhor para todas. Essa forma de organização anarquista chama-se autogestão. A autogestão significa auto-governo, ou seja, governo das pessoas pelas próprias pessoas, sem ninguém para liderá-las ou dizê-las o que podem ou não fazer. Essa forma de organização faz com que as riquezas produzidas pela sociedade fiquem diretamente nas mãos de quem pertencem, ou seja, de seus produtores.

O anarquismo não quer o poder centralizado, pois é incompatível com ele. Sob o ponto de vista anarquista, todo aquele que visa o poder sobre seus semelhantes é um inimigo da liberdade dos mesmos. Se alguém quer mandar em você, quer dizer que essa pessoa quer te privar de tomar decisões sobre sua própria vida, ou seja, essa pessoa quer te escravizar.

O anarquismo propõe uma transformação social com base nas organizações sociais e populares existentes hoje em dia. Em outras palavras, o anarquismo propõe uma revolução que inicialmente se dará dentro das próprias pessoas e nos pequenos meios sociais em que elas vivem (no ambiente familiar, na escola, no trabalho, com os amigos, conhecidos e etc…). Se as pessoas pararem e decidirem que não serão escravas dos governos e que querem se organizar para ser livres, a liberdade estará a um passo delas.

2 – O que você sentiu – e que decisões tomou – ao se dar conta que o casal Carlo e Anita morava em uma casa em frente ao ponto de ônibus no Guarujá para o qual você seguia todos os dias, sem que você soubesse?

Quando eu descobri isso eu quase cai para trás! Mas até chegar aí, levou um longo tempo…

Eu comecei a participar efetivamente de grupos anarquistas na minha região em 1994, quando eu tinha 17 anos. O Carlo Aldegheri faleceu aos 93 anos, no dia 4 de maio de 1995, infelizmente eu não tive tempo hábil para conhecê-lo nesse quase 1 ano…

Quando ele morreu, um amigo nosso de Cubatão (Moésio Rebouças) nos mostrou umas fotos do Carlo e da Anita (que ele havia recebido pelo correio), perguntando se nós, por ser do Guarujá, não conhecíamos ele. Eu e minha ex-companheira (Liana Ferreira) respondemos que não, porém, ficamos intrigados com o fato de um ex-combatente da guerra civil espanhola ter vivido no Guarujá e ninguém saber absolutamente nada sobre isso.

Anita Aldegheri e Marcolino em 2 11 2004

Avançando o tempo um pouquinho, no dia 20 de maio de 1998, aos 71 anos, morria Jaime Cubero. A morte desse outro companheiro anarquista que morava em São Paulo e que, de certa forma, era bem mais próximo dos jovens libertários daquele momento e que influenciou muito os punks de São Paulo, em especial, os que formariam o Movimento Anarcopunk, pegou muitos de nós de surpresa. Para a juventude libertária foi uma perda irreparável pois o Jaime Cubero era uma pessoa bastante amável, acolhedora e extremamente paciente com os jovens (muitas vezes inconseqüentes) que o procuravam. E era com o Jaime que a gente tirava nossas dúvidas sobre a história e a teoria do anarquismo. Nesse momento, ao perceber que a finitude de nossos velhos companheiros era bem mais próxima do que esperávamos, e que a história desses lutadores poderia cair no completo apagamento, eu, a Liana, o Rodrigo Rosa e o Leandro Ramos nos mobilizamos para entrevistar alguns desses velhos companheiros.

Na verdade, o Rodrigo e o Leandro haviam entrevistado o Jaime Cubero, seis meses antes dele falecer. Foi a última entrevista dele. Depois entrevistamos o Edgar Rodrigues (Rio de Janeiro) e o Diego Giménez Moreno (São Bernardo do Campo). Posteriormente essas entrevistas formariam o livro “Três Depoimentos Libertários” lançado pela Editora Achiamé, do Rio de Janeiro, em junho de 2002.

Ainda em 1998, dentro dessa nossa empreitada de procurar os companheiros mais velhos, fomos no Centro de Cultura Social de São Paulo (entidade que reunia os militantes anarquistas mais velhos e na qual o Jaime Cubero fez parte até seus últimos dias de vida). Procuramos o companheiro que assumiu as funções do Jaime Cubero (prefiro não citar o nome dele), e perguntamos pelo Carlo Aldegheri, se ele havia deixado esposa, filho ou algum parente que pudesse nos dar algum tipo de informação biográfica. Escutamos como resposta que o Aldegheri não tinha filhos e que o seu único parente era a esposa que havia falecido antes que ele. Depois dessa resposta desanimamos…

Algum tempo depois organizamos uma atividade antimilitarista em Santos, na qual tivemos a presença de um companheiro de Campinas (Ferdinando Ramos), que acabou nos revelando que foi ele quem tirou aquelas fotos do Aldegheri e enviou para nosso companheiro de Cubatão. O Ferdinando ainda nos disse que o Jaime Cubero havia passado o endereço do Carlo Aldegheri para ele entrevistá-lo. Ao chegar na casa do Aldegheri, o Ferdinando disse que foi recebido pela Anita Aldegheri, mas que o Carlo já estava tão doente que ele não conseguia falar. Vendo aquela triste situação o Ferdinando arrumou o Carlo na cama, beijou o seu rosto e tirou as fotos dele e da Anita.

Duas semanas depois o Jaime Cubero ligou para ele e informou o falecimento do Carlo Aldegheri. Ferdinando nos disse que, ao  contrário do que fomos informados, o Carlo Aldegheri havia falecido primeiro que a Anita. E nos deu o endereço da casa dos Aldegheri.

Ao chegar no endereço, constatamos que a casa deles, que tanto havíamos procurado, se localizava exatamente no ponto de ônibus que eu utilizava todos os dias. Porém, no local, só achamos uma pastelaria e um consultório de dentista. Eu desanimei novamente… A Liana teve a ideia, por se tratar de um sobrenome diferente, de procurar o nome Aldegheri, numa lista telefônica e assim encontramos um novo endereço.

Em dezembro de 2001, fomos nesse endereço e, depois de todos os obstáculos, encontramos a Anita Aldegheri, aos 95 anos de idade, extremamente lúcida (descobrimos que depois da morte do Carlo, ela havia mudado de endereço). Ainda conseguimos conviver com ela cerca de 13 anos, até o falecimento dela em 31 de março de 2015, quando ela morreu aos 108 anos de idade. Foi a partir desse encontro que conseguimos lançar, em novembro de 2017, o livro “Carlo & Anita Aldegheri: Vidas Dedicadas ao Anarquismo”.

3 – O livro descreve as razões da ruptura entre Carlo e o movimento anarquista brasileiro. Fale sobre as suas conclusões e os por quês, que me parecem claros no prefácio do livro ao citar que “o esquecimento parece ter sido intencional porque o casal era muito mais prático do que teórico.”

Em primeiro lugar é preciso lembrar que o anarquismo no Brasil desde a sua gênese sempre foi alvo de uma intensa repressão seja pelo governo, seja pelo clero, posteriormente pela extrema direita e, em alguns casos, até mesmo pelos partidos de esquerda.

Quando chegamos nos anos 60, os grupos anarquistas existentes não tem o mesmo número de militantes que outrora, pois ainda estavam se recuperando da ditadura do Estado Novo e do Getúlio Vargas (que estava mais para ‘mãe dos ricos’ do que ‘pai dos pobres’). Então, quando é implantada a ditadura militar em 1964, os anarquistas voltam para a atuação na clandestinidade o que, agravado pelo contexto político do período, dificulta que a juventude venha a aderir ao movimento nos anos de 60 e 70.

Desta forma, quando chegamos na reabertura política e a retomada pública de espaços anarquistas, temos um hiato geracional no anarquismo brasileiro. De forma que nos anos 80 e 90, ou você tinha militantes na faixa de seus 60 e 70 anos, ou militantes na faixa de 20 para baixo. Nessa época não havia militantes na faixa dos 40 anos (salvo exceções pontuais) para ajudar no diálogo entre os mais velhos e o mais novos.

Essa lacuna entre as gerações libertárias nos anos 80 e 90, além do conflito natural característico pela diferença das idades, contribuiu bastante para que os mais jovens desconhecessem por completo não só a própria história e teoria do anarquismo, como desconhecessem a própria trajetória desses militantes mais velhos que ainda estavam vivos.

Nas duas únicas entrevistas que temos do Carlo Aldegheri (que estão publicadas em nosso livro), uma de 1991, e a outra de 1994, poucos meses antes dele falecer, o que nos chama a atenção é que nenhuma delas foi realizada por ninguém do movimento anarquista. Se não fossem esses pesquisadores de instituições ligadas ao Estado, muito provavelmente não teríamos nenhum registro do Carlo Aldegheri narrando sua própria história.

No prefácio do livro, nosso coletivo editorial, levanta duas possibilidades para o apagamento histórico da trajetória militante do Carlo e da Anita Aldegheri: poderia ser proposital (pelas opiniões polêmicas do Carlo) ou poderia ser pelo completo desconhecimento dos mais jovens em relação aos mais velhos e um certo descuido do anarquismo em preservar sua própria história.

Pessoalmente, eu acredito que seja descuido por parte dos mais jovens. Os velhos muitas vezes são esquecidos pela juventude na nossa sociedade, isso se reflete em muitos grupos sociais, e também em ambientes que se dizem libertários. Isso é um equivoco que precisa ser modificado. Fico feliz ao ver, que nos meios anarquistas sérios hoje em dia, exista um enorme esforço para a preservação e divulgação de nossa trajetória e herança política. Cito como exemplo disso, as várias bibliotecas e espaços anarquistas que também funcionam como centro de documentação e organizam grupos de estudos e inúmeras publicações e pesquisas que resgatam a nossa história.

Antônio Martinez organizando o arquivoacervo do movimento anarquista de São Paulo em Julho de 1982, final da ditadura militar

No caso do Carlo e da Anita Aldegheri, o que me leva a crer que esse apagamento não foi proposital, é o fato de alguns outros anarquistas da mesma geração dos Aldegheri também não terem suas trajetórias devidamente registradas. Poderia citar uma pequena lista aqui, porém, citarei apenas um caso que para mim também é emblemático. Antônio Martinez (1915 – 1998), militante anarquista de São Paulo, foi membro da histórica Federação Operária de São Paulo (FOSP) e chegou a participar do conflito armado da Batalha da Sé em 7 de outubro de 1934, quando antifascistas colocaram os integralistas para correr da Praça da Sé, debaixo de tiros. O velho Martins, como todos o chamavam carinhosamente, estava sempre ao lado do Jaime Cubero, conversando com os jovens, indicando leituras, nos presenteando com periódicos e brochuras raras, incentivando os mais jovens… Era uma figura sempre presente e conhecida da juventude anarquista dos anos 80 e 90. Teve uma trajetória extremamente ativa e relevante. Morreu 5 meses depois que o Jaime Cubero, aos 83 anos de idade, no dia 28 de outubro de 1998. Ninguém nunca o entrevistou. Aspectos de sua trajetória política e social jamais serão conhecidos…

Além disso, outro fato que corrobora a minha opinião, é de que essas duas entrevistas que existem com o Carlo Aldegheri foram indicações feitas aos pesquisadores acadêmicos via Centro de Cultura Social de São Paulo e Jaime Cubero.

Mas a bem da verdade, é preciso ressaltar, que a família Aldegheri chegou a financiar uma gráfica e também doou um terreno no Guarujá, para o movimento anarquista em São Paulo, que foram mal administrados pelos companheiros e depois foram devolvidos para o Carlo e a Anita. Os companheiros mais velhos que conseguimos perguntar sobre esses episódios nebulosos, se recusavam veementemente em falar sobre esse assunto.

Em tempo: Recentemente tivemos a grata surpresa de receber uma mensagem de uma jornalista de Santos que chegou a entrevistar o Carlo Aldegheri em 1988. Atualmente ela vive no Canadá e muito em breve ela vai nos repassar a entrevista que ela fez. Quem sabe não temos uma nova edição ampliada do livro vindo por aí?

4 – Carlo lutou na guerra civil espanhola contra os fascistas e foi preso com Sandro Pertini, o socialista italiano que tornar-se-ia presidente italiano entre 1978 e 1985. Ele participou da história real e não teórica. Como alguém que sobreviveu à décadas de campos de concentração e prisões antes de imigrar para o Brasil, permaneceu tão consciente sobre o mundo e as pessoas até o fim da vida, sem nunca ter aberto mão do anarquismo?

Carlo Aldegheri após passar pela experiência da guerra civil espanhola, passou por várias prisões incluindo campos de refugiados e campos de concentração sob domínio fascista e nazista. Em 1943, Carlo consegue fugir do campo de concentração fascista de Renicci di Anghiari. Seria compreensível para qualquer pessoa nessas circunstâncias, que ela procurasse um abrigo e se afastasse da militância até seu nome ser esquecido pelas autoridades. Mas ao invés de ter essa atitude, surpreendentemente, Carlo Aldegheri no momento seguinte a sua fuga, já retoma a sua atividade atuando clandestinamente no Comitê de Libertação Nacional de Verona. E Carlo não estava sozinho, companheiros anarquistas como Alfonso Failla, Randolfo Vella , Francesco Viviani, Giovanni Battista Domaschi, Guglielmo Bravo, Emilio Silvio, entre muitos outros, estavam juntos nessa ação.

Aqui no Brasil, por exemplo, temos a admirável trajetória do anarquista negro Domingos Passos que devido sua intensa atuação social era chamado acertadamente  pelos seus contemporâneos de ‘Bakunin Brasileiro’. Em uma de suas muitas prisões, Domingos Passos foi enviando para a colônia penal de Clevelândia, no município do Oiapoque (Amapá) – um verdadeiro campo de concentração criado por Artur Bernardes em 1924 – para morrer lá à míngua. Na colônia penal de Clevelândia, também conhecida como ‘Inferno Verde’ morreram, entre outros, os seguintes anarquistas: Pedro Augusto Motta, Nino Martins, Nicolau Parada, José Maria Fernandes Varela e José Alves do Nascimento. Domingos Passos consegue escapar da Clevelândia e, ao invés de fugir das autoridades, a primeira coisa que faz é procurar redações de jornais e participar de comícios operários públicos para denunciar o verdadeiro extermínio que estava se passando naquele campo de concentração brasileiro.

Então, para responder a sua pergunta, eu acredito que o Carlo e a Anita Aldegheri fizeram parte de uma ilustre geração de lutadores que tiveram sua personalidade formada por um forte rigor ético, pela auto disciplina, pela responsabilidade, pelo compromisso, pela dedicação e pela coerência entre a prática e a idéia que se defende. Fizeram parte de um conjunto de pessoas que generosamente ofereceram o seu próprio sangue para fertilizar o solo de uma nova terra, sem mestres, nem escravos.

Maria Lacerda de Moura

A própria anarquista brasileira Maria Lacerda de Moura (1887 – 1945) afirmava: “Recusar ser instrumento de iniqüidades. Sacrificar o corpo, se preciso for, afim de não sacrificar a razão, a liberdade interior ou a consciência”. Para esses anarquistas, a solidariedade e o compromisso militante eram muito mais do que uma palavra morta.

5 – O que a burguesia nacional de 1917 difere da de 2019 se ela, ainda permanece escravocrata, latifundiária, e continua a temer as palavras Greve e Operário?

Decorrido mais de um século desde 1917, podemos dizer que os opressores e os oprimidos são compostos praticamente pelos mesmos elementos sociais.

Porém, o controle, a manipulação e a exploração das classes mais vulneráveis de nossa sociedade pela elite, mudou de forma e precisamos estar atentos à essa mudança se queremos combater essa tragédia social de forma eficaz.

No “Searching For The Light” você (Carlos Lopes) brilhantemente escreveu: “Métodos sutis valem mais do que mil cassetetes”. Um pouco depois a banda anarcopunk de São Paulo Metropolixo escreveu: “Tiraram nossas armas através da violência, hoje nos dão armas e nos tiram a consciência”. Para mim são letras que se completam e que nos dizem muito sobre a nossa atualidade.

Antes os libertários tinham que enfrentar o governo e suas instituições repressivas concretas: o militarismo, o clero, as prisões, as deportações, o inimigo estava bem declarado. Hoje os métodos de controle e manipulação são muito mais sutis, eles permeiam toda nossa vida em sociedade a partir do momento em que acessamos a internet, o celular, as redes sociais. Hoje uma fake news no whatsapp repetida mil vezes, tem muito mais credibilidade popular do que uma tese comprovada cientificamente. Um verdadeiro pesadelo goebbeliano. Temos que atualizar nossas formas de luta para combater essas novas ferramentas da ditadura capitalista.

Nas manifestações contra a reforma da previdência social e a perda de direitos trabalhistas que houveram em 2017, muitas pessoas da periferia que estão muito tempo desempregadas ou trabalham informalmente questionaram que elas já viviam sem nenhum direito trabalhista e que, portanto, para elas não fazia sentido lutar para manter um direito no qual elas nunca poderiam usufruir. Que talvez, se fosse uma manifestação contra o desemprego, elas participariam.

Segundo os últimos dados divulgados pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), atualmente mais de 11 milhões de brasileiros trabalham sem carteira assinada e quase 5 milhões fazem parte dos “desalentados”, aqueles brasileiros que desistiram de procurar emprego. Como dialogar com essas pessoas que não estão no mercado formal de trabalho e que fazem parte da classe social mais precarizada que existe ? Na minha opinião, esse é o grande dilema para a luta social hoje em dia. Se chegamos numa favela brasileira hoje em dia e vamos conversar com a juventude, muitos não vão se enxergar como classe trabalhadora, menos ainda como operários. Porém, é muito provável que se entendam como ‘periferia’.

Não acredito que devemos pegar o método de organização de nossos antepassados e aplicá-lo mecanicamente nos dias de hoje. Devemos estudar o contexto social de hoje em dia e também as falhas que tivemos no passado. A maior lição que os lutadores do passado nos deixaram é que eles souberam perfeitamente dialogar com as classes mais injustiçadas de sua época e souberam encaminhar propostas práticas que vinham de encontro com as necessidades materiais dessas pessoas. Se queremos avançar, devemos ter a sensibilidade de falar a mesma língua do povo.

6 – Na mesa do CCS no Brás em SP em dezembro de 1987, Carlo questionou os punks presentes. Comente cada uma das afirmações de Carlo a partir de sua vivência no movimento anarco-punk e com as conversas com Anita. Creio que será bastante útil para conscientizar.

A – Carlo cobrou os punks pelo uso de indumentária militar como calças, coturnos e camisetas camufladas (o mesmo serve para metaleiros) e disse ser uma ofensa o uso da suástica, seja para qual propósito for.

Nos anos 80 e até mesmo no começo dos 90, era muito comum uma certa confusão ideológica. Havia zines que colocavam numa página um símbolo anarquista e na outra um símbolo nazista. Também era comum ver um punk que se dizia anarquista numa manifestação contra o racismo hoje, e no mês seguinte ele ter aderido aos skinheads white power. As pessoas falavam sobre anarquismo, porém, poucas sabiam realmente do que estavam falando. Nessa atividade mencionada, o Carlo estava tentando alertar os punks presentes para suas contradições. Devemos lembrar que o Carlo sempre foi um antimilitarista, ele largou o serviço militar obrigatória na Itália e fugiu para a França. E depois de toda a experiência dele na guerra civil espanhola e como prisioneiro durante a segunda guerra mundial, esse sentimento antimilitarista só aumentou nele. Sobre a suástica, é a mesma coisa. Carlo foi preso em campos de concentração controlados por nazistas, ele viveu de perto o horror nazista. Pelo menos um dos seus companheiros, pelo que conseguimos averiguar, o italiano Giovanni Battista Domaschi foi morto no campo de concentração de Dachau em 1945.

B – “Resolve o problema social quem tem uma organização. Com música não se resolve o problema social existente. A música é superficial. Tem que ir para dentro da fábrica.”

Mais uma referência a vida pessoal do Carlo Aldegheri. A revolução espanhola não foi algo que se deu espontaneamente em 1936. O movimento anarquista na Espanha foi se preparando desde o final de século XIX, para esse momento. Desde 1870, com a fundação da secção espanhola da Associação Internacional dos Trabalhadores, passando pela revolta anarquista de Jerez de la Frontera em 1892, pela fundação da Escolas Modernas e pelo fuzilamento do seu principal propagandista Francisco Ferrer em 1909. Com a fundação em 1910 da Confederação Nacional do Trabalho (CNT), passando pela fundação em 1927 da Federação Anarquista Ibérica (FAI) até chegar no massacre de Cajas Viejas em 1933 e na insurreição de Asturias em 1934. A revolução espanhola foi fruto de uma forte organização social construída diretamente pelos próprios trabalhadores no chão das fábricas. É importante frisar que havia um trabalho cultural e artístico muito fecundo nesse período também, porém, ele advinha do trabalho de base e não o contrário.

C – “Se quiser ser contra a burguesia, coloquem-se 3 ou 4 bem organizados e vão assaltar bancos.”

Essa é uma questão muito interessante que inclusive eu não coloquei no livro por falta de documentos mais concretos, mas, que me intriga muito até hoje em dia. Alguns anarquistas mais velhos que eu entrevistei, me afirmaram que o Carlo Aldegheri havia atuado como anarquista expropriador, porém, que ele não gostava de falar sobre isso. O anarquismo expropriador foi uma denominação dada a certos grupos de afinidades anarquistas que através de roubos e assaltos a bancos obtinham recursos econômicos para financiar as atividades do movimento anarquista. Era um meio ilegalista de financiar o movimento anarquista e operário, nunca foi utilizado como forma de sustento individual. Geralmente eles se chamavam expropriadores porque consideravam que os verdadeiros ladrões advinham da classe burguesa. Nunca consegui um documento que comprovasse essa passagem do Carlo Aldegheri pelo anarquismo expropriador, porém, essa passagem sempre me chamou muito a atenção. Assim como na entrevista que ele deu em 1994, onde o Aldegheri afirma: “Perseguiram os assaltadores de banco, ora, os assaltadores de banco às vezes tem mais dignidade que qualquer deputado, porque pelo menos arriscam a vida para assaltar um banco”.

7 – O comentário de Carlo sobre o Brasil – feito nos anos 90 – ainda é pertinente? E segundo você, por que o brasileiro ainda é tão acomodado?

“Aqui se fala de futebol, centro esquerda, centro direita, carnaval e cocaína. Por isso não fiz um grande amigo em 40 anos de Brasil.”

O Carlo e Anita Aldegheri participaram de uma das maiores experiências de coletivização da história da humanidade que foi a revolução espanhola. Cerca de 75% da industria e 70% da áreas rurais foram coletivizadas pelos próprios trabalhadores. Grandes complexos industriais funcionaram de forma autogestionária com aumento de produção e com muito mais eficiência que no sistema capitalista. Os antigos patrões que não fugiram no decorrer dos acontecimentos, tiveram que trabalhar lado à lado com os demais operários e camponeses. Os serviços públicos como transporte, energia, saneamento básico, educação e lazer foram todos coletivizados. A central sindical anarquista, a Confederação Nacional do Trabalho (CNT) representava a maior força social da Espanha e reunia mais de 1 milhão e 500 mil trabalhadores. Muitas comunidades simplesmente aboliram o dinheiro. Depois das experiências revolucionárias concretas que ocorreram na Espanha, ninguém jamais poderia dizer que o anarquismo é uma utopia impraticável.

Depois de passar por essa experiência única, sofrer com as perseguições fascistas durante a segunda guerra mundial e chegar no Brasil nos anos 50, encontrar um movimento anarquista fragilizado pelas décadas de repressão e de certa forma viver isoladamente, inclusive, de uma convivência mais próxima dos demais companheiros, eu acredito que, psicologicamente, isso deve ter abalado profundamente o casal, o que se refletia em seus comentários extremamente críticos, porém, verdadeiros. Por essa razão, mesmo quando eu não concordo 100% com algum comentário deles, eu procuro entender as razões desses comentários com base na própria experiência de vida dos Aldegheri.

Eu não acho que o brasileiro é apático ou conformista por natureza, pelo contrário, eu acredito que a população brasileira reflete os séculos de deformação de caráter e os preconceitos atávicos colonizadores que lhes são impostos desde o momento de nascimento, passando pela ambiente familiar e escolar, até chegar na vida adulta em meio as pressões econômicas, políticas e religiosas que vão moldar a sua personalidade. Eu acredito inclusive que o brasileiro é rebelde, porém, geralmente ele é rebelde contra a sua própria classe, contra o seu próprio povo e sua própria história. Isso não acontece espontaneamente, o brasileiro é completamente manipulado (hoje mais do que nunca) pelos mecanismos de controle social que coordenam as tecnologias de comunicação e o meios de informação de forma que as pessoas interiorizam os valores burgueses e reacionários das propagandas de massa fazendo com que a população se comporte segundos os interesses das classes dominantes, defendendo esses interesses como se fossem os seus próprios interesses.

Isso não é algo novo. Malcolm X dizia: “Quem te ensinou a odiar a textura do seu cabelo? Quem te ensinou a odiar a cor da sua pele a tal ponto que você se alveja para ficar como o branco? Quem te ensinou a odiar a forma do seu nariz e dos seus lábios? Quem te ensinou a odiar você mesmo da cabeça aos pés? Quem te ensinou a odiar os seus iguais?”. Hoje fala-se sobre liberação de armas, se isso acontecer, as pessoas vão matar umas às outras, enquanto os opressores se confraternizam, aliás, isso já acontece em nosso cotidiano. Nesse caso, considero que o principal problema nem é as armas, mas a falta de consciência de classe.

Devemos unir esforços para mudar esse quadro social. Desconstruir os argumentos reacionários influenciando a opinião pública para uma direção libertária. E isso só conseguiremos estando junto com as pessoas, falando a mesma língua e trabalhando em conjunto com elas.

 8 – Comente sobre a situação política do país e acrescente comentários sobre o papel das eleições, religiões, educação e sindicalismo.

No Brasil vivemos um avanço do neoliberalismo, do conservadorismo e de um Estado militar cuja a consequência será nefasta especialmente para as populações mais fragilizadas. Sob o ponto de vista anarquista entendemos que nenhuma mudança social significativa virá dos processos eleitorais. As duas últimas eleições presidenciais comprovaram o que os anarquistas historicamente afirmam: Eleição é fraude ! O resultado da eleição de 2014, foi fraudado por uma manobra judicial para atender os interesses da elite. A eleição de 2018 elegeu um candidato (que se recusava a apresentar propostas políticas concretas) com base em mentiras e fake news, ou seja, outra fraude. Ou a população se organiza para construir uma mudança real ou ela será esmagada pela política capitalista. Só podemos confiar em nós mesmos e no poder de nossa luta autônoma.

As religiões neopentecostais, em sua maioria, crescem alimentadas pelo obscurantismo popular e defendem um projeto político extremamente autoritário. A bancada evangélica tem como objetivo criminalizar manifestações religiosas com as quais não possuem afinidades, colocar-se contra direitos humanos básicos e universais, impor o ensino religioso (da religião deles, entenda-se) nas escolas públicas e interferir na orientação sexual das pessoas. Esse fundamentalismo religioso representa uma ameaça ao Estado Laico, às minorias e à democracia. Precisa ser combatido urgentemente por todos os meios necessários.

A qualidade do ensino público – algo que poderia mudar radicalmente nossa realidade – não por acaso, vem constantemente piorando e enfrentando toda sorte de dificuldades: falta de estrutura, professores mal remunerados, desestimulados e muitas vezes despreparados, uma base curricular muitas vezes ultrapassada que engessa as próprias práticas pedagógicas. O resultado desse modelo é a alta evasão escolar, os jovens abandonam a escola por entenderem que aquele ensino não vai ajudá-los profissionalmente, além de inúmeros fatores econômicos e sociais que praticamente os expulsam da escola. Para piorar esse quadro que já é ruim, o governo ao invés de promover um projeto concreto para melhorar a qualidade da educação, visa implantar a proposta da Escola Sem Partido que criminaliza os professores em sala de aula e censura o pensamento crítico dos alunos.

O sindicalismo brasileiro atualmente passa por uma grande crise. A burocracia, o elitismo e a centralização das direções sindicais impede o avanço da luta dos trabalhadores. Como já falamos antes, o número de pessoas desempregadas, desalentadas e que trabalham informalmente crescem a cada dia. Essas pessoas serão excluídas até dos próprios sindicatos de trabalhadores ? Creio que o sindicalismo brasileiro se encontra numa grande bifurcação: ou ele fortalece, estrutura e atua lado à lado com os movimentos sociais e populares – se radicalizando ou o sindicalismo brasileiro vai agonizar lentamente nos próximos anos.

9 – Que ações têm sido organizadas para difundir o anarquismo no país? Você participa de quais coletivos e grupos?

A atuação anarquista no Brasil está crescendo progressivamente e de maneira bastante plural. Ao mesmo tempo que grupos organizam bibliotecas públicas e centros de documentação para preservar uma história de luta e resistência que foi constantemente renegada pela historiografia oficial, outros se dedicam a publicação de livros sobre assuntos diversos: história, teoria e temas da atualidade. Muitos trabalham a questão da educação, criam grupos de estudo, organizam aulas públicas, cursos populares gratuitos, atuam no movimento estudantil fortalecendo a luta de alunos e professores. Outros trabalham a questão da ecologia social, trabalham com comunidades indígenas e quilombolas. Atuam junto a movimentos por moradia no campo e na cidade. Formam grupos contra o racismo, feministas e lgbts. E militam no campo sindical, junto a movimentos comunitários, periféricos e populares.

Desde 2010, eu participo do Núcleo de Estudos Libertários Carlo Aldegheri que é um grupo anarquista organizado que modestamente atua na região da Baixada Santista. A partir de 2012, inauguramos a Biblioteca Carlo Aldegheri na cidade do Guarujá, que tem como objetivo ser uma biblioteca social e também um centro de documentação libertária. Publicamos livros e jornais. Organizamos grupos de estudos sobre temas do campo libertário. Atualmente temos a colaboração do Coletivo Anarcofeminista Insubmissas (CAFI) um grupo feminino que trabalha a questão do anarcofeminismo. E dentro de nossas possibilidades procuramos atuar em conjunto com os movimentos sociais de nossa região. Quem tiver mais interesse em conhecer nosso trabalho, pode acessar nosso canal no youtube: https://www.youtube.com/channel/UCDSBGKWilr4PDjK8zJurRvg/videos

Ou entrar diretamente em contato conosco através do seguinte e-mail: nelca@riseup.net

Eu gostaria ainda de aproveitar a oportunidade para agradecer o amigo Carlos Lopes pela excelente entrevista!

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